14/04/2009

A Repetição
Délia Steinberg Guzmán


Embora esta palavra possa conter conotações psicológicas de "aborrecimento", o certo é que a repetição é uma das armas mágicas de que se serve a Natureza. Mais do que de repetição, deveríamos falar de reiteração, daquilo que nos obriga a voltar várias vezes sobre as mesmas coisas até ficarem devidamente assimiladas. Em oposição ao valor pedagógico da reiteração, o nosso mundo atual exalta as novidades e o que muda constantemente. Porem, não é preciso muita perspicácia para constatar que por esse caminho não se chega a lado nenhum.

Façamos uma breve análise de uma e de outra atitude: a mudança e a reiteração.

O variável é uma triste máscara com que se encobre a ignorância.

O que pouco ou nada sabe julga que na variedade está a demonstração do seu domínio sobre muitas coisas. No entanto, uma breve analise leva-nos à conclusão de que, geralmente, essas muitas coisas são dominadas superficialmente e mal.

Hoje começa-se uma coisa, amanhã outra... Hoje lê-se um livro, amanhã outro... Hoje mergulha-se em alguma doutrina filosófica, amanhã noutra... Hoje sente-se simpatia por uma determinada personagem, amanhã por outra... Hoje trabalha-se por umas idéias, amanhã por outras...

Lança-se também o conceito ambíguo de “criatividade”, quando, na realidade, é preciso saber para criar, e saber custa tempo e repetições. Fala-se de uma espontaneidade que deve governar os atos humanos para que cada um exprima aquilo “que vem do seu interior”. Mas, a que “interior” nos referimos? Mal se passa a barreira do corpo começa “o interior”, e aí podemos encontrar desde paixões aberrantes até êxtases místicos... Se se trata de “exprimir”, haverá que exprimir o melhor que possuímos, criar na base do melhor que somos, pois o pior já se manifesta sem que lhe exijamos demasiado.

Há que enfrentar, a partir deste ponto de vista, uma obra de construção humana, onde a variabilidade tem muito pouco que fazer. As grandes pirâmides egípcias que nos surpreendem pelo seu tamanho, foram levantadas com pedras muito semelhantes umas às outras, só que habilmente colocadas e dirigidas para o alto.

Na outra face da moeda encontramos a reiteração e vemos nela a Lei com que se maneja o Cosmos inteiro. Basta analisar, por exemplo, a lei do eterno retorno; basta tomas consciência dos ciclos de manifestação que fazem com que as coisas apareçam e desapareçam.

A Natureza repete incessantemente as suas estações, seus dias e noites; milhões de vezes a semente germina na terra da mesma maneira. E outros tantos milhões de vezes, o nosso espírito submerge-se na matéria procurando despertar para o seu verdadeiro Ser.

Como parte que somos da Natureza, não seguiremos, porventura, o mesmo ritmo?

Repetir, repetir, repetir... não por enfado, mas pela imperiosa necessidade da perfeição. O que repete não faz sempre o mesmo: fá-lo cada vez melhor, sente-se crescer em cada novo ato de aprendizagem.

Um outro exemplo de peso –para além do já mencionado exemplo da Natureza- é o conteúdo dos Textos Sagrados de todos os tempos. Umas poucas idéias fundamentais giram sob mil formas aparentemente diversas, apenas para criarem a ilusão da novidade, ou talvez para nos demonstrarem que no fundo existe uma única Verdade. A reiteração é o estilo predileto dos Grandes Mestres, nos que, modestamente, nos inspiramos.

Por que é que a Natureza se repete nos seus ciclos? Por que é que vimos tantas vezes à vida em novos corpos? Por que é que os ensinamentos espirituais nos reiteram sempre as mesmas idéias? A resposta é bem clara: porque ainda não aprendemos a lição, porque não assimilamos a experiência necessária, porque ainda estamos na ignorância e na evolução.

Tomando consciência deste fato abrimos possibilidades para uma verdadeira mudança. As mudanças não são deslocamentos laterais: a mudança definitiva é a que leva o homem verticalmente desde a sua obscuridade material até ao seu brilho espiritual. Mas para percorrer este caminho vertical há que assumir a Verdade; para chegar à Luz há que reconhecer as sombras; para chegar à meta há que dar muitos passos parecidos uns aos outros, enquanto avançamos na Senda um pouco mais para frente e um pouco mais para o alto.

Consideremos seriamente o valor da reiteração. Não desprezemos este ensinamento universal. Mas atenção: aquele que se limita apenas a repetir, acaba por se robotizar e odiar o que está a fazer; o que repete procurando a perfeição satisfaz-se com cada um dos seus atos, encontrando neles essa pequena parte de superação que encerram. Aquele que se limita apenas a repetir, perde habilidade cada dia que passa; o que procura a perfeição, é um pouco melhor todos o dias.

Quem se limita apenas a repetir, cumpre atos; quem procura a perfeição, realiza atos; quem se limita apenas a repetir, envelhece irremediavelmente e quem repete na procura da perfeição está cada vez mais próximo da juventude eterna, da “Afrodite de Ouro”.


Artigo escrito em Junho de 1992
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